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domingo, 18 de outubro de 2009

Na tarde da sua ausência


Houve época em que o dinheiro era secundário, terciário para mim. Imbuído em ideias inocentes, acreditei que as pessoas deveriam me amar pelo meu caráter, não pelo valor que trago na carteira ou pelas roupas que veste meu corpo ou até mesmo pela forma como me divirto. Estava em começo de faculdade e, de repente, me encontrei invadido pelos pensamentos apocalípticos de Adorno e Horkheimer, a demoníaca indústria cultural; além do existencialismo sartreano, e tantas outras filosofias que se empenham em transformar o Homem em ser pensante e infeliz. No entanto, a conduta que adotei era uma representação teatral dos modelos de vida que eu encontrava nos livros acadêmicos. Agi como um ator medíocre representando uma personagem bestial para entreter a platéia. E, no palco da vida, me tornei um personagem de mim mesmo, coisa que todos fazem espontaneamente. Mas naquela circunstância extremei a situação, provocando grande caos interno que transcendeu ao físico. Nesse período, eu namorava um rapaz – cujo nome será preservado porque hoje ele nada mais tem a ver comigo, embora sobreviva em minha memória o rosto doce daquele molequinho que me amou como ninguém foi capaz de amar – que me alertou dos perigos futuros dizendo: “cuidado quando a gente começa a faculdade a gente se acha dono do mundo e do saber, acabamos nos tornando arrogantes, quando não temos nem capacidade de pensar por nós mesmo”. Mas os conselhos do molequinho não poderiam jamais mudar o ordem natural da vida. Não há outro modo de progredir se não mergulhando até o pescoço na treva do caos.


E assim errei inúmeras vezes. Não faz mal. Algum imbecil anônimo me desobrigou da perfeição quando decretou que “errar é humano”. Sou humano; logo, estou no meu direito. Entretanto, esse artifício de defesa não alivia o peso da culpa gerada pela angústia de acreditar que poderia ter feito melhor, que poderia ter sido uma pessoa superior àquela do passado, e, por consequência, contribuído com algo mais produtivo na construção deste mundo cada vez mais medonho. Contudo, deixo o alerta: não se deve alimentar a culpa. É preciso se perdoar. Tenho feito isso todos os dias. Uma crase mal colocada, uma concordância suspeita, os lapsos de criatividade, a falta de clareza são crimes menos condenáveis do que aqueles que mutilam almas e destroem vidas. Não sou inclinado ao altruísmo mas não tenho disposição para ser desumano.


Entretanto, o homem de hoje não é o mesmo de ontem, nem será o mesmo de amanhã, a dialética é verdadeira. Daí, relembro os anos em que fui choramingoso e estúpido, voluntariamente fiz-me um mártir do mundo e de seus habitantes. Era um imbecil e, ao lembrar-me disso, tenho vontade de arrancar-me os dentes com um soco; mas também de beijar-me a face por sido sensível ao ponto de amar sem limites. Por sorte, sofri com os horrores profundos do amor uma única vez. Claro, agora me questiono; será possível – não tenho certeza – amar alguém quando o objetivo principal é usar essa pessoa para satisfazer as próprias aspirações?


Por causa desse tipo de pergunta, consumi vorazmente as imundas futilidades intelectuais: eu as engoli sem compreendê-las muito bem e ainda acreditava nelas até quando o mesmo homem quem me fez crê-las também me mostrou o quanto é monstruosamente melhor viver que teorizar a vida. No momento desta consciência, a velha bílis do molequinho, introduzida em mim sob a máscara do amor, infectou-me com novas pretensões. É verdade, confundi a literatura com a prece, escravizei minhas palavras com a missão de resgatá-lo. Desde então, formou-se um nó em meu peito: um nó de víboras. Elas não me maltratam ou amargam minha alma, elas aniquilam alguns sonhos, proporcionam-me escorregar pela vida sem necessidade de freio. Tornei-me um magnífico enfermo com sursis, certo de que mais cedo ou mais tarde terá reconhecida a própria loucura. O que amo em minha loucura é que ela me protege. É o meu hábito e também o meu ofício. Não é um produto do Homem, ela se projeta, é um espelho crítico que reflete várias imagens com o mesmo caráter. Mas a definição de caráter é subjetiva, isso pode tornar o que acabo de escrever em algo falso. Ou verdadeiro. Todavia, não é nem verdadeiro nem falso, assim como tudo o que se escreve sobre os loucos, sobre os homens; assim como são os homens em si mesmos, assim como é a intelectualidade, a futilidade e a imundice inapreensível que nos perpassa mesmo que tentemos nos manter imaculados.


Desse modo, aprendi a repugnar as verdades, buscá-las é idiotice, o destino de quem tenta desvendar um mistério é sempre o fracasso. Sou irremediavelmente humano, a única verdade que me importa é a verdade dos meus atos. E diante dos atos e fatos, é indispensável que eu aceite as lágrimas que chegam juntas com as lembranças do meu molequinho, aquele que foi tão meu como ninguém nunca foi tanto de alguém. Preciso admitir, sinto falta dele, desejo tê-lo entre meus braços e entre minhas pernas. Dentro de minha alma. Mesmo sendo um sonho, desse sonho não abrirei mão, quero o em mim, impregnando-me de saudades e outros sentimentos valiosos. Não sofro, meu molequinho não existe mais, sei disso. Ele é só uma recordação encantadora, um eventual galanteio do passado com o objetivo de lembrar-me que nem sempre fui racional, duro, orgulhoso, vaidoso e debochado.


Indiscutivelmente, depois que a liberdade explodiu em meu peito, jamais consegui ser livre novamente.


O tempo está úmido, um vento ralo invade meu escritório, roça minha pele fresca, suaviza o emaranhado de víboras em que se tornou meu coração, fazendo-me terno e infantil, abrindo espaço ao perdão; perdão por você ter me amado; perdão por eu ter lhe amado. E, sobre tudo, perdôo-me por dedicar-lhe esse amor fantasma, o qual você nem supõe que ainda exista. Fecho os olhos ardentes, represo as águas internas a fim de combater o presente que gera a angústia de desejar o molequinho e, ao mesmo tempo, de querer apagá-lo definitivamente da minha memória.


Em linhas gerais, termino este vômito com a palavra mais significativa para esta tarde da sua ausência:


Saudade.

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