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terça-feira, 15 de setembro de 2009

Rei do Cheiro, o novo romance de João Silvério Trevisan


João Silvério Trevisan é um dos escritores mais respeitados da literatura brasileira contemporânea. E não é para menos. Ele acumula, ao longo da carreira, três prêmios Jabuti e um APCA. Vale lembrar que toda a sua obra possui uma marca registrada: tirar a sujeira debaixo do tapete e apresentá-la ao leitor. Em seu novo romance, a contundência da obra não poderia ser diferente. Com REI DO CHEIRO, o escritor constrói um painel da moderna sociedade brasileira. Aborda a formação da elite de forma impiedosa, mostrando o que há por detrás das cortinas do poder. Nas palavras do escritor, seu novo trabalho estaria revelando aos brasileiros um Brasil que eles não conhecem, ou não tem coragem de admitir. Afora este cenário revelador, o Autor oferece, ao mesmo tempo, uma narrativa que além de tirar o fôlego também surpreende com a inovação e a variedade de técnicas que foram utilizadas para eliminar o narrador em terceira pessoa. Nesta entrevista, João Silvério Trevisan fala a respeito dos meandros que envolveram a produção de REI DO CHEIRO.

W.R - O que o motivou a criar o romance REI DO CHEIRO?

JSTREVISAN – O ponto de partida foi a tentativa de responder a uma pergunta que sempre me intrigou: como nasce uma grande fortuna? Eu queria, particularmente, falar da nova elite paulista, carro-chefe da economia brasileira. E me interessava analisar seus primórdios, na década de 70, quando a ditadura militar brasileira instaurou a reserva de mercado em várias áreas, inclusive na nascente indústria da perfumaria. Daí fui agregando elementos que configurassem a crise brasileira a partir e em torno dessa elite. Na 2ª parte do romance, criei uma situação limítrofe para enclausurar essa população num espaço único e assim observá-la quase como num aquário. Tive em mente uma situação parecida com a que Luís Buñuel explorou no filme “O Discreto Charme da Burguesia”.


W.R Quanto tempo passou elaborando o projeto?

JSTREVISAN – No meu ofício de escritor tenho um método de trabalho bastante rigoroso. Sempre me pareceu imprescindível trabalhar com um plano antecipado de estrutura, estilo e personagens. O primeiro projeto de REI DO CHEIRO data do final da década de 80. Queria relatar a saga de um homem comum, que começa do nada e se torna um grande empresário na área de perfumaria. Isso abrangeria seu nascimento, ascensão e morte, atravessando a história do Brasil a partir da década de 50. Durante muitos anos vim trabalhando intermitentemente essa idéia, com coleta de materiais e pequenas pesquisas. Em 2005, eu estava voltado para a elaboração de outro romance, quando eclodiu a crise do mensalão. Foi extraordinário, porque de repente os personagens do REI DO CHEIRO estavam pululando à minha volta. Então não tive dúvida: deixei o outro projeto e mergulhei de cabeça no REI DO CHEIRO. Em maio de 2006, essa sensação se exacerbou, quando aconteceram os ataques do PCC em São Paulo. Os fatos pareciam vir ao encontro da minha ficção. Eu me senti quase um documentarista. Saia pela rua tomando notas, como habitante e personagem daquela cidade acuada e assustada, que parecia ter sua espinha quebrada pelo PCC. Foi muito doloroso, mas também um privilégio viver aquele momento, que passei diretamente para o meu romance.


W.R - Você utiliza técnicas ousadas em REI DO CHEIRO, com uma narrativa em elipses vertiginosas que vai provocando a imaginação do leitor. Por outro lado, o leitor se confronta com uma espécie de narrador invisível. Em que sentido essas técnicas inovam a prosa ficcional?

JSTREVISAN – Não sei se inovam, mas com certeza eu precisava de recursos funcionais que correspondessem ao meu projeto. Ou seja, um romance construído à base de elipses narrativas e que usasse como matéria-prima o lixo tanto narrativo quanto cultural, num processo parecido com a reciclagem. Para as elipses, revisitei o cinema de Robert Bresson, especialmente seu “Diário de um pároco de aldeia”, cujas imagens dão prioridade à densidade poética, deixando ocultos os episódios principais. Para utilização do lixo narrativo, fui rever obras como a trilogia “U.S.A.”, de John dos Passos, “Berlin Alexanderplatz”, de Alfred Döblin e “Zero”, de Ignácio de Loyola Brandão. Eu queria trabalhar com tudo aquilo que fosse considerado sobra da fabulação, especialmente os produtos da cultura de massas. Por isso, teci a narrativa com trechos de programas de rádio e televisão, textos de revistas de entretenimento, citações de filmes, anúncios publicitários, letras de canções, na tentativa de recuperar sub-produtos da indústria cultural a partir da década de 50. Assim, em alguns capítulos a voz narrativa é de locutores de rádio. Outras vezes, escrevi capítulos inteiros como releitura de letras de canções. Muitas vezes a voz monológica do próprio protagonista é uma costura de letras de músicas cafonas. Outras ainda, o sentimento dominante do capítulo é dado pelo tom das letras musicais que invadem o texto como pitadas de instigação. Além disso, utilizei notícias de jornais (verdadeiras ou não), entrevistas com meus personagens, cartas, telegramas, e-mails. Sem falar dos diálogos a seco, monólogos interiores e fluxos de consciência. Cheguei a inserir na trama um trecho da filmagem de “Anjos da noite”, de Wilson Barros. Eu simplesmente precisava que meu romance tivesse incontáveis sujeitos narrativos, falando por si mesmos e espelhando a cacofonia da cultura de massas. Essa colagem tinha o objetivo de captar as vozes do tempo, sem dimensionar prioridades nem metê-las no funil de um narrador onisciente e impessoal. Para tanto, busquei abolir a voz absolutista e vicária do narrador neutro em terceira pessoa – essa prática que voltou como uma praga na prosa ficcional contemporânea, num evidente retrocesso aos saturados recursos do século XIX. O máximo que concedi à narrativa tradicional foi criar uma espécie de narrador-interlocutor, uma voz abstrata que interage com os protagonistas, no momento mesmo dos fatos. Não foi fácil, e nem sempre trabalhei com total segurança. Pelo contrário, corri riscos. Mas eu precisava forçar os limites, para atingir uma literatura de invenção, que é a única possível. Me assusta constatar como na atualidade nem parece que existiram as vanguardas literárias do começo do século XX, tremendamente inspiradoras. Houve um movimento revisionista que passou como um trator por cima das possibilidades mais inventivas da literatura. Basta consultar a lista de livros premiados no exterior e no Brasil para ver que o barato agora é resgatar Henry James e Machado de Assis. Parece que o conceito de boa literatura, hoje, precisa criar uma coincidência entre o mercado e as fórmulas consagradas pela crítica jornalística, que cultiva o conformismo e a mediocridade. Livro bom é livro fácil de ler, que remeta ao já conhecido, que traga entretenimento se possível inteligente – mas nada que possa inquietar, pois fica indigesto. Afinal, o mercado livresco está em crise, e a competição com a internet é feroz, então tudo que a literatura produz tem que ser de fácil digestão. Lembro quando, anos atrás, um famoso editor mimado pela mídia e pela crítica brasileiras me propôs enxugar trechos do meu romance “Ana em Veneza”, para não ficar indigesto – coisa que recusei. Para essa gente, literatura tem que ser inteligente, ma non troppo. Inventiva, ma non troppo. Tudo para não ficar indigesta. Ora, a fidelidade a mim mesmo é meu mais precioso bem. E disso não abro mão.

W.R Os extremos da vida do seu protagonista, Ruan Coronado, são de tal modo invadidos pela presença midiática que acabam se transformando quase num reality show. Você acredita que a sociedade contemporânea se tornou um produto da indústria cultural?

JSTREVISAN – Desde a invenção do rádio, a indústria cultural vem encorpando e se impondo. Na sociedade contemporânea, somos manipulados 24 horas por dia pela publicidade, pelas novelas, pela música comercial, pelos programas de entretenimento, através dos quais aprendemos a consumir tudo o que for mais óbvio. Estamos de tal modo expostos que nossas vidas se tornaram um grande reality show. O sucesso de programas como o BBB ou “A Fazenda” se explica por espelharem nossas necessidades exibicionistas, que por sua vez precisam do voyeurismo para se completar. Somos ao mesmo tempo exibicionistas e olheiros. O entorpecimento daí resultante é uma maneira de enfrentar nossa espantosa solidão. Portanto, nada mais natural do que tecer o mundo interior do meu personagem Ruan Coronado como um amontoado de lugares-comuns, já que ele é fruto de uma sociedade subjugada às prioridades da cultura de massas mais imediatista.


W.R Ruan faz sucesso na área de perfumaria com um desodorante à base do óleo de ylang ylang. Existe algum motivo especial para você ter utilizado o ylang ylang como base do perfume do Rei do Cheiro?

JSTREVISAN – O ylang ylang aparece no romance como a essência-fetiche de Ruan. Acho que tudo começou com o caráter exótico dessa planta de origem asiática e de fragrância quase entorpecente. Inclusive seu nome científico é muito gracioso: Cananga odorata. Depois descobri a fama do ylang ylang como afrodisíaco. Para o meu personagem, obcecado por sexo e droga, isso era perfeito. Passei meses atrás do óleo natural – já que o sintético resulta muito mais simplificado e sem nuances. Descobri uma plantação no estado de São Paulo, mas não era período de extração do óleo. Acabei mandando trazer de Moçambique, onde um amigo estava trabalhando. Mas o vidrinho chegou com a tampa danificada e quase vazio. Finalmente, um perfumista da Givaudan, aqui em São Paulo, me forneceu uma amostra de ylang ylang puro. A fragrância era aquilo mesmo que eu esperava: contundente para o olfato, quase hipnótica.


W.R Qual o sentido do PCC (renomeado CROC) no seu romance?

JSTREVISAN – Naquilo que vivi e estudei da moderna história brasileira, não consigo me lembrar de um fato que pudesse se comparar aos ataques do PCC, em termos de desfaçatez e precisão por parte dos bandidos, e de perplexidade e desamparo por parte da sociedade. Eu acho que, naquele momento crítico de maio de 2006, o PCC funcionou como a consciência ferida do Brasil – algo como uma Aids moral, se a gente lembrar que a eclosão da Aids nos devolveu a consciência de nossa fragilidade e denunciou a petulância da nossa pobre ciência. Aquilo que Cazuza clamava – “Brasil, mostra a tua cara” – o PCC fez: ele nos tirou a máscara. Foi no mínimo humilhante ver pela TV um grupo de criminosos tão organizados a ponto de dominar os mecanismos de segurança da maior e mais rica cidade do Brasil, com os ataques desnorteantes sendo conduzidos por toda parte e por sujeitos quase invisíveis. Tudo coordenado por celular, esse fetiche contemporâneo que as pessoas gostam de ostentar na rua como um falo poderoso, signo da sua importância e poder. O país da ordem e do progresso foi jogado na mais inesperada desordem. A selvageria e, ao mesmo tempo, a verdade dura desse momento talvez expliquem o silêncio posterior, que me parece uma tentativa de deletar do próprio inconsciente nacional os fatos terríveis ocorridos entre maio e julho de 2006. É algo sério demais para fazer de conta que nada aconteceu. Esse esquecimento, deliberado ou não, precisa ser evitado a qualquer custo, para nosso próprio bem enquanto nação. Lembrar é preciso. Só se debruçando sobre fatos verdadeiros e radicais como esses teremos alguma revelação de quem somos e o que é o Brasil. O PCC foi um momento de rara epifania brasileira, que talvez o país só atinge, parcialmente, em períodos da Copa do Mundo. Sua vertente visionária e profética nunca foi suficientemente revelada. Daí porque decidi terminar REI DO CHEIRO durante os ataques do PCC. A dor da memória pode nos salvar.


W.R - No caos que se torna o interior do local sequestrado, um dos reféns, que é diretor de teatro, tem um surto de loucura que mais parece um transe profético. Ele diz que Macunaíma morreu e deixaram seu cadáver apodrecendo. Qual o sentido da morte de Macunaíma?

JSTREVISAN – Não é de hoje que eu tenho me preocupado com o sentido subliminar do personagem Macunaíma, herói sem nenhum caráter. Acho que o modernismo trouxe um componente fundamental à identidade e auto-estima nacional. Mas esse mesmo modernismo inaugurou também preconceitos e tomou partido de maneira nem sempre justa. Ou seja, não dá para tratar os modernistas, a quem amo, como ídolos intocáveis. A consagração de um grande escritor como Mário de Andrade tem sido frequentemente usada para a implementação de uma ideologia nacionalista barata. Não sei até que ponto o próprio Mário tem culpa nisso. Mas não me é estranha a constatação de que na história existe sempre uma caterva explorando cadáveres. O cadáver de Mário de Andrade já deu muito pano pra manga, do jeito que o maquiaram. Reluta-se, por exemplo, em revelar a parte mais comprometedora da sua correspondência, que jogaria luz sobre o homossexual torturado que ele foi, mas danificaria o constructo “heróico” da sua imagem. Nesse passo, Macunaíma tornou-se não apenas um personagem cult mas um arquétipo brasileiro. Na condição de herói sem nenhum caráter, foi integrar com força renovada o inconsciente brasileiro, de onde tinha sido intuído pelo talento profético de Mário de Andrade. Nossas veleidades ufanistas acabaram assumindo o mau-caratismo como forma inevitável de ser brasileiro – basta ver o elogio que tantas vezes se faz da nossa esperteza, o chamado jeitinho brasileiro, do qual políticos são mestres. Mas não se pode deixar de constatar que essa característica daninha está disseminada na vida brasileira como um todo. Ora, historicamente o nosso jeitinho já deu o que tinha que dar. Nós estamos colhendo frutos amargos dessa mania de tirar proveito de tudo, a partir do primado de “quem pode mais, manda”. O exército de miseráveis, analfabetos e marginalizados brasileiros é fruto de um fiasco histórico. Trata-se de uma tragédia continental, que aponta para a necessidade do Brasil mudar seu mundo interior e se repensar. Após 80 anos de mistificação cult, o arquétipo de Macunaíma devia ser colocado no seu devido lugar. Não se contesta o valor literário do personagem, mas sim a sombra que ele projetou, enquanto mito lunar e metáfora do jeito desonesto de ser brasileiro.

W.R - Logo em seguida, este mesmo personagem afirma que o Brasil fede. Você acha que o Brasil fede?

JSTREVISAN – Num romance sobre perfume, é inevitável que aparecesse a sua outra face, o fedor. Os títulos dos capítulos da segunda parte de REI DO CHEIRO aludem ao fedor que vai exalando daquele local sequestrado. Eu acho que o Brasil fede, e a partir daí quis construir essa metáfora. E os ataques do CROC (o PCC do romance) veem arrematar esse fedor. O PCC é um fruto legítimo do Brasil, esse país que fede por sua imoralidade, hipocrisia, corrupção e falta de lealdade para com seus cidadãos. Acho o Brasil mais parecido com uma madrasta má do que uma mátria amorosa. Vejo o povo brasileiro exilado dentro de um país tomado por falsos donos que não passam de grileiros espertalhões. Aliás, nunca saímos das capitanias hereditárias. Tudo aqui é feito à base da divisão de espólio entre os donos de feudos. Sobra a multidão de fracos e perdedores. Eu sempre admirei os perdedores e sua capacidade de resistir. E não estou falando do velho mito da revolução. Falo apenas de sobrevivência e dignidade.


W.R - Ismael, o líder do CROC, é um bandido politizado, bonitão e fã de filmes clássicos. A população das periferias de São Paulo envia mensagens de apoio a Ismael. Você acha que os moradores da periferia estão a favor dos bandidos?

JSTREVISAN – Se a impunidade grassa entre a elite no poder e aí um grupo vem se contrapor a essa elite, mesmo que fora dos padrões legais, é natural que os excluídos do grande poder tenderão a sentir simpatia com os rebelados, mesmo porque muitas vezes são eles próprios inimigos dessas leis. Os ataques do PCC tiveram clara aprovação de certos setores da população menos favorecida das periferias, como era possível constatar nas ruas e nas reportagens dos jornais. Muitos jovens, sobretudo, saudaram a explosão tanática das chamas de maio de 2006 como uma possível saída para sua revolta. Nas minhas pesquisas, encontrei muitos grupos de rap afinados com as propostas destrutivas do PCC – e não só na internet. No próprio centro de São Paulo pude encontrar CDs que louvavam a coragem dos bandidos do PCC. Aproveitei sugestões dessas canções no meu romance e às vezes até usei pequenos trechos de letras, temperando os paradoxos. O leitor poderá ver como aquilo é de uma selvageria assustadora. Isso, com certeza, não foi meramente minha cabeça de ficcionista que criou.

W.R - Quando da morte trágica de Ruan, seu irmão Carlos afirma que seu sangue é sagrado. Isso significa que um cafajeste como Ruan poderia ter se tornado uma espécie de Santo?

JSTREVISAN – Sempre senti empatia por meus personagens, mas com Ruan tive dificuldades imensas. Ele me despertava mal estar, que é o do criador que precisa encontrar o calhorda dentro de si mesmo para compor as calhordices da sua criatura. Nunca pensei nele como um santo, nem mesmo perto da sua morte. Ruan é para mim um fruto típico do seu tempo e do seu país. Ele entra pra valer no pega-pra-capar nacional. E colhe os resultados dolorosos desse vale-tudo. Quando acaba mordendo o pó, ele se vê ante o espelho do verdadeiro Ruan e sofre um processo de reconciliação consigo mesmo. Isso não tem nada a ver com santidade.

W.R - O final desolador do romance se expressa na falta de rumo de Carlos. Ainda assim, ele repete diversas vezes a palavra “recomeçar” seguida de um questionamento final: ”Até quando, Carlos?” Se esta pergunta fosse feita a João Silvério Trevisan, qual seria sua resposta?

JSTREVISAN – Talvez eu não devesse ir além do que meu romance propõe, quer dizer, deveria manter no ar as perguntas lançadas pela fabulação. Mas como sou um cidadão brasileiro que, entre outras coisas é escritor, recorro à minha assustada vivência brasileira para dizer que não está dando pra aguentar mais. Viver num país como o Brasil, atualmente, tem sido uma tortura constante. Além das penúrias normais a quem, como eu, não costuma frequentar listas de best sellers nem pertence a famílias poderosas ou se alinha a partidos para conseguir boquinhas, devo dizer que o Brasil está quase irrespirável. Há uma cortina de fumaça criada pela lenda dos tais Brics, países com promessas de grande potência, que o Brasil integra. Tem quem ache que nosso destino enquanto nação está traçado pelo petróleo do pré-sal, pela importância do biocombustível, pelo preço favorável das commodities, pelo consumo interno que tomou um empurrão com a bolsa família. Tudo isso são quebra-galhos. Como nunca achei que a economia é a melhor medida para considerar um país respeitável, confesso que tenho achado o Brasil uma coisa monstruosa, por sua capacidade de mistificar. O Brasil não tem projeto, enquanto nação. Aqui, as coisas só se ajeitam quando se tornam fatos consumados ou visam bons resultados eleitoreiros. Politicamente, estamos diante de mistificações como nunca se viu antes neste país. Vivemos numa democracia aparente, com aparentes conquistas. Ficamos orgulhosos de gastar milhões nos processos eleitorais, para garantir a legitimidade alavancada pelos institutos de pesquisa e sacralizada pelas urnas. Mas, como convém ao país das máscaras, estamos mais sem rumo do que nunca: os sinais se misturaram ou foram trocados. Neste país, o caçador de marajás vira marajá. Um presidente messiânico, que renunciou ao seu passado, se nivela ao que há de pior na política brasileira para se sustentar. Nossos políticos encontram-se em processo galopante de apodrecimento moral. Nossos intelectuais pararam de pensar e preferem balançar a cabeça. Nossos movimentos sociais, financiados pelas estatais, seguem as ordens do messias. Para coroar tudo, o povão recebe o seu mensalinho, no varejo. Conheço testemunhos de que no interiorzão do Brasil as pessoas não querem mais trabalhar, pois têm a garantia mensal da bolsa família. Não que eu ache o trabalho um valor em si. Mas essas pessoas estão sendo jogadas no pior tipo de indignidade, que é depender da esmola dos outros, no caso o Estado. Como nunca antes neste país, o destino do povo está depositado na boa-vontade dos cofres públicos. Se um povo perde a capacidade de conquistar seu destino, então perderá seus valores mais fundamentais. Acho que estamos plantando um futuro tipicamente brasileiro, como já plantamos com aquela libertação dos escravos que não libertou ninguém. No caso atual, é ainda mais grave, pois o jeitinho brasileiro se instaurou em sistema. Basta ver os escândalos de corrupção política, que mais uma vez não vão dar em nada. Mas é bom lembrar: sempre que um político sai impune de acusações de crimes vários, essa impunidade está alimentando o surgimento de novos PCCs, pois dá a entender que estamos num país sem lei. Quando se chega ao ponto de cinismo em que chegamos, é muito difícil pressentir um futuro digno desse nome. Pra mim, o Brasil é um gigante com pés de barro.

W.R - Qual a importância de REI DO CHEIRO para a sociedade brasileira hoje?

JSTREVISAN – Bom, eu não acredito em missão salvacionista da produção ficcional e das artes narrativas. Mas sempre achei que escritores podem ser para-raios do seu tempo e, através da expressão ficcional, têm potencial de chamar a atenção para a realidade de um modo que se poderia chamar de Poesia, se isso for entendido como a capacidade de escancarar a crise de modo visionário. Sempre acreditei que há um paralelismo entre o profeta e o poeta. Então, com REI DO CHEIRO, o que pretendi foi exatamente isso: marcar a lembrança com ferro em fogo, mimetizando o papel do profeta. Se há alguma importância no que faço, e eu acho que há, então deve ser essa capacidade de insistir que o rei está nu e de inventar formas de sobreviver, com um fio tênue de esperança. Mas até quando?

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