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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

É verdade que escrever dói?

Corro os olhos pelos livros. Sinto uma tristeza tão fria que chega a doer nos ossos. Só Deus sabe quantas lágrimas foram derramadas para dar vida aquele monte de folhas secas. Em conversa com um amigo, que é um grande escritor, ouvi: "ser escritor dói. Dói muito". Não compreendi o que ele queria dizer. Até então, o ofício "santificado" era só um sonho. E os sonhos só são bons quando não são reais, pois na medida em que adquirem substância também se tornam cruéis e injustos como a realidade mesma. Meu amigo estava coberto de razão.

Tanto tinha razão que cá estou eu, trancado em meu escritório no fim de uma tarde cinzenta e gelada. Na parede à minha frente está o quadro cubista esposizione de una vita, de Romano di Martino, além de diversos trechos de romances e de poemas dos meus autores amados. Ao redor do meu computador, dezenas de livros espalhados: a bagunça característica tanto da mesa quanto da minha vida. À direita, minha estante com mais de 600 títulos que acumulei à duras penas, sacrificando minhas diversões noturnas, minhas roupas da moda, meus caprichos.

Toda esta atmosfera me provoca angústia. E essa angústia é fruto de um questionamento. Por que escrever?

Damos início a essa tarefa espinhosa porque sabemos que algo dentro de nós vai mal; sentimos um desagrado improvável com o mundo e com nós mesmos, com efeito, abrimos mão de tudo o que é postiço. Logo, já que perdido o mundo das aparências - o querido mundo das aparências - resta-nos criar novos mundos.

Ao tomar os livros nas mãos, os leitores acreditam que, numa feliz tarde de verão, o Autor não tinha nada importante a fazer e decidiu sentar-se para escrever uma história. Mas não é bem assim que acontece. Dá-se um duro danado construir o enredo, tentar definir a estrutura que melhor corresponda ao projeto no qual se está trabalhando; sem falar nas personagens que decidem se digladiar com o pobre escriba. Depois da obra pronta – no geral – parece que tudo surgiu facilmente. Entretanto, para se atingir essa naturalidade necessária, uma personagem pode fazer o Autor esbravejar, gritar, enlouquecer, chorar, gemer, resignar-se. E ainda assim voltar ao trabalho.

Cabe então uma pergunta; de onde surgem essas personagens mirabolantes capazes de proezas impensáveis por pessoas mentalmente sadias? Seriam mesmo criaturas surgidas do nada? É lógico que não! João Silvério Trevisan dá a dica em seu indispensável romance O Livro do Avesso.

Repare na apresentação da obra:

"espelho: porque escrever é estar necessariamente diante do espelho.
"O Autor se reflete à procura de algo parecido com sua verdade.
"Mas, ao realizar esse mergulho, o Autor se assusta.
"No fundo de si mesmo, no seu Santo dos Santos, está instalado um desconhecido. O outro.
"O Autor não sabe que do mundo só vemos as costas: o Outro é a parte detrás de si mesmo.
"Quando, então, o Autor poderá se ver frente a frente e desvelar seu próprio rosto? Talvez nunca. Talvez não convenha.
"O autor precisa aprender a se olhar no espelho e ver aí refletido o Outro. Aprendizado indispensável.
"Contemplar a si mesmo seria, afinal, tão insuportável quanto descobrir a face de Deus.
"Ao Autor, só resta perder-se."

Somos nossos próprios personagens, do mais ridículo ao mais respeitável; do mais desprezível ao mais amável. Dentro de nós existe o Outro e, dentro deste outro, inúmeros Outros que vão se preenchendo infinitamente. Este processo acontece porque o escritor é um ser permeável, um ladrão sórdido que se apropria das belezas e das desgraças do mundo, dos Homens e acaba fundindo-se a elas. Dessa forma, torna-se uma espécie de Catoplebas, o animal mítico que aparece para Santo Antão em A tentação de Santo Antão, de Flaubert, depois recriado por Borges em O livro dos seres imaginários. O Catoplebas é uma criatura absurda que devora a si mesma, começando pelos pés. O escritor é algo parecido - em sentido figurado, óbvio -, pois canibaliza suas experiências e as usa como matéria-prima para suas histórias.

Pois bem, tentemos compreender esta mixórdia. Começa-se a escrever porque há algo que vai mal; então, por que dói ao externar esse incomodo? Pela lógica, o escritor deveria sentir-se aliviado ao terminar uma obra já que ele tirou o aborrecimento de dentro de si e o transpôs em palavras. Um erro grasso pensar dessa forma. Externar não significa resolver o problema. Medonho não é escrever mas sim não ser lido. E quando lido não ser levado a sério (é o que sempre, ou quase sempre, acontece).

Contudo, existem centenas de escritores por aí declarando aos quatros ventos que não pretendem influenciar a vida de seus leitores. Isso é um fingimento descarado. Todo texto nasce com um propósito, de modo contrário ele não precisaria existir. Se escrevo sobre paixões avassaladoras cujos personagens ultrapassam barreiras e culminam sempre num final feliz, está aí o compromisso da obra. Compromisso que eu desprezo. Por acaso alguém conhece final feliz na vida? O fim da vida não é inevitavelmente a morte? E quem quer morrer? Ninguém. Passa-se a existência evitando o assunto, fingindo que não vai morrer.

Utilizei a morte porque é um caso emblemático de como as pessoas preferem se enganar que encarar a verdade.

Mas o escritor é astucioso. Ele conta mentiras verdadeiras; pois, literatura é um espelho. Portanto, ler é mergulhar dentro do espelho. Súbito nos encontramos ali, do outro lado, em meio a pessoas, objetos e situações que nos são familiares. Identificamos-nos com as dores, as frustrações, as angústias e até mesmo com as alegrias das personagens. Se existe essa identificação é porque a história se parece tão real quanto nós mesmos. Essa realidade ilusória só é possível porque o escritor possui a habilidade de apresentar às pessoas o que elas são mas não podem – ou não querem – enxergar. O processo de desvelar o Outro é tão doloroso pelo simples fato de que o Outro está dentro de nós.

1 Comentários:

  • O homem possui uma necessidade de fugir da realidade. Mas não consegue fugir, porque mesmo na ficção ele se coloca nela (como você falou). Se você fosse escrever sobre um cachorro ou um peixe, teria algo de você neles. Mas por que você escreve? Simples: porque é o que você sabe fazer (risos). O mesmo acontece com o ator, que o coloca também em seus pesonagens (não digo fisicamente, lógico), o pintor está em seus quadros, o músico em suas canções. Nós apenas refletimos, naquilo que sabemos fazer, nós, nossas vidas e as pessoas ao nosso redor, adicionando um pouco de sonhos. A dona de casa faz isso também, no feijão que cozinha. Do mesmo jeito que você que leiam sua obra, ela quer que comam sua comida, que tem um pouco dela ali (se for ver por outro ponto de vista, ela quer que a comam então. kkkk). Então, pra não fugir do meu raciocínio, se você fosse um pintor, se indagaria do mesmo jeito sobre suas pinturas, teria a mesma visão que você tem das suas palavras. Então, você escreve porque sabe escrever!

    Mesmo sem que você queira externar sua obra, seu inconsciente quer que todos vejam e comentem. Isso é natural do ser humano, a curiosidade em concretizar pelos outros aquilo que você já sabe.

    Apesar de me perder em alguns pontos aqui, não vou reler e editar, pois sei que você vai entender. Não tão fácil quanto em uma mesa de bar com uma cerveja, mas vai entender.rs

    Abraços!

    Por Blogger Casimiro, às 12 de agosto de 2009 às 21:13  

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